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O DIÁRIO DE TERESÓPOLIS
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Chuva, frio e neve na última grande montanha do Caminho de Santiago

Etapas na região do Cebreiro marcadas pelo desafio climático e psicológico

Após um dia de descanso em Ponferrada, folga que me permitiu conhecer melhor o impressionante Castelo dos Templários e ainda revisar minha companheira de viagem no Guiana Hostel, hora de voltar para a estrada. Depois de dez dias mantendo a rotina de pedal, a vontade de seguir em frente era enorme. Aquela manhã começou tranquila, leve, sem eu sequer imaginar que as próximas etapas seriam o maior desafio que enfrentaria no Caminho de Santiago de Compostela. Na preparação para o décimo primeiro dia de pedal, havia visto a previsão de chuva e chance de nevar. “Tranquilo, vou me agasalhar bem e tocar em frente”, pensei. Mas seria muito mais intenso do que havia imaginado.
Quando deixei Ponferrada para trás, o frio já estava de lascar. O maior que havia enfrentado até então na rota jacobéia. Usava segunda pele, luva e roupas impermeáveis, mas ainda assim o vento gelado no sentido contrário estava sendo um desafio. Mas ainda iria piorar. Em relação à altimetria, os primeiros 25 quilômetros foram bem tranquilos, até Villafranca del Bierzo. Nesse povoado fica mais um ícone do Caminho, um marco que não deve ser ignorado pelo peregrino ou bicigrino: está ali a pequena igreja de Santiago, onde fica a “Puerta do Perdón”. Segundo a tradição, aqueles que não têm condições de enfrentar a última grande montanha antes de Santiago de Compostela, o Cebreiro, podem ter os pecados absolvidos ao atravessar tal porta.
Como eu estava em perfeitas condições físicas para concluir a peregrinação, parei apenas para admirar e registrar os detalhes da pequena igreja. Nesse local, tão relevante para a tradição do Caminho, tive também um momento de reflexão sobre um questionamento feito aqueles que escolhem a bicicleta como meio de transporte. “Quem faz de bike não aproveita”. “De bicicleta a pessoa passa correndo pelo Caminho”. “O Caminho passa e o ciclista nem vê”. Ouvi alguns relatos do tipo nos grupos sobre a rota de peregrinação que participo e, mesmo já tendo minha convicção de que viver a essência dessa jornada vai muito além do meio de transporte escolhido, na Porta do Perdão vi dezenas de peregrinos passando direto, sem sequer olhar para o histórico templo – enquanto eu estava ali, com minha bicicletinha, tentando absorver o máximo daquele momento.

Olha a chuva!
Em Villafranca o tempo começou a mudar para pior. A chuva fina foi aumentando a cada quilômetro percorrido e, nas proximidades de Vega de Valcarce, a mistura de precipitação e frio deixaram o pedal mais desafiador. “Mas iria piorar”, repito a expressão citada acima. No lance de ataque à última grande montanha, o Cebreiro, existe uma divisão para quem está a pé e os que seguem de bicicleta. Por “La Faba”, os peregrinos. Por “La Laguna”, os bicigrinos. Essa é um dos poucos locais onde há especificamente identificação de um Caminho de Santiago diferente para os ciclistas, inclusive com a tradicional sinalização ao longo da estradinha asfaltada. A outra rota é trilha de montanha, não pedalável na maior parte.


Morro acima foi ficando cada vez mais frio. Entre “La Laguna” e o Cebreiro bati queixo. Sou um cara de montanha, mas enfrentar tanto frio de bicicleta era novidade para mim… A temperatura estava perto de zero grau e ainda peguei uma neblina forte quase chegando ao meu destino. Dedos congelados, raciocínio lento e apenas um pensamento: “preciso conseguir hospedagem por aqui”. E dei sorte. Das 104 vagas do albergue municipal, peguei a de número 92. Se atrasasse alguns minutos, teria que passar direto pelo pequeno povoado com construções em pedra.
Inicialmente, havia programado concluir essa etapa ali por conta do famoso pôr do Sol. Diante das condições climáticas, sabia que seria impossível. Ainda assim, um fator histórico pesou na decisão de manter o ponto de parada, o “Milagre do Cebreiro”. Conta a lenda que no primitivo templo de Santa Maria, em um dia semelhante ao que enfrentei, apenas um simples homem apareceu para a Santa Missa. Depreciando o único presente, o monge responsável pelo rito o conduziu com grande desânimo e pouca fé. Então, no momento da consagração, hóstia e vinho se converteram em Carne e Sangue. Atualmente ainda se conserva naquele local o cálice do milagre, uma joia românica do século XII e um relicário doado pelos Reis Católicos doaram quando lá chegaram para contemplar o milagre em 1486.

E ficou ainda pior…
De Ponferrada ao Cebreiro foram 56 quilômetros, com 1.226 metros de altimetria acumulada. Se na chegada estava um “frio de doer”, a saída foi absurdamente pior. Pretendia seguir o horário de rotina, por volta das 7h, mas adiei o início do pedal ao máximo, com expectativa que o tempo melhorasse. Mas não melhorou. O termômetro marcava -1, mas a sensação térmica… Comecei a descer a montanha com chuva, que aumentou em um pequeno trecho de subida antes de retornar o declive, o Alto com Poio, que se eleva a 1.335 metros de altitude. Fui obrigado a parar para tomar um café, esquentar o corpo e principalmente as mãos (que ficaram juntas no grande copo até a bebida terminar). 
Nesse momento a situação ficou um pouco mais complicada. Começou a nevar intensamente. Cena linda, digna de filme, mas extremamente gelado. Já estava atrasado em relação à programação do dia. Precisava continuar, seria necessário enfrentar mais esse desafio. Assim é o Caminho, assim é a vida. Do Alto do Poio até Triacastela é uma longa descida. Deixei a bicicleta me levar e, diante da extrema situação, mal conseguia apertar as manetes para acionar o freio e reduzir a velocidade.
Em “três castelos”, parei novamente. Mais um grande copo de café para diminuir a sensação causada pelo congelamento parcial das mãos. Eu e mais cinco ciclistas tivemos a mesma ideia ao avistar uma espécie de lanchonete. Só para se ter uma noção do frio que enfrentamos naquela – que parecia interminável – descida, dias depois encontrei outro ciclista paulista, Wellington, que me relatou ter abortado a missão no meio e descido de carona com o carro de um órgão público, que parecia ser a Defesa Civil. Além dele, outros dois brasileiros, também de bicicleta, não suportaram o frio e acionaram um táxi para fugir da extrema situação.
Em Triacastela esquentou um pouco, mas a chuva persistiu. Ali começam os famosos bosques da Galícia, verdíssimos, mas muito úmidos, logicamente, e com trechos com muitas pedras. De Sarria em diante, mais uma novidade: aumenta absurdamente o número de peregrinos, visto que essa cidade é o limite da distância mínima exigida para se garantir a Compostela – documento emitido pela igreja de Santiago comprovando a peregrinação. São pelos os últimos 100 quilômetros a pé ou 200 se a pessoa estiver de bicicleta ou a cavalo.


Para essa etapa havia programado pedalar até Palas de Rei, aproximadamente 90 quilômetros. Porém, fui obrigado a ficar em Portomarin, com 67 pedalados e 1.076 de altimetria. A decisão em reduzir a distância do dia se deu por conta do atraso na saída do Cebreiro, com as longas paradas para fugir do frio, e um fator no mínimo curioso. De Sarria em diante há muitas vacas e bois pelo caminho, animais que cruzam as ruas e trilhas o tempo todo. A pé, é possível evitar pisar nos seus excrementos. Em duas rodas, eles são esmagados e espalhados o tempo todo. Cheguei bastante sujo em Portomarin, povoado que se ergueu ao lado Rio Miño, já no final da tarde. Seria preciso lavar todas as roupas e mochila e, como poderia não haver secadora no albergue, se chegasse muito tarde a Palas de Rei poderia ter problemas.
Como estava um pouco confuso psicologicamente por conta da “gelada que havia me metido”, seria bom parar também para colocar a cabeça em ordem. Na próxima semana, os últimos quilômetros e a tão sonhada conclusão dessa aventura espiritual. O projeto “Teresópolis no Caminho de Santiago de Compostela” teve apoio da Trilhas & Rumos, Loja TopSpin, Cycle São Cristóvão, Corpo & Ação, Jornal O Diário e Diário TV.

 

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Edição 26/04/2024
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