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O DIÁRIO DE TERESÓPOLIS
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Caminho de Santiago: Da catedral gótica às terras de leão

Chuva, falta de hospedagem e longas planícies entre os desafios na região da meseta

Havia encontrado meu ritmo de pedalar, de vivenciar o Caminho de Santiago de Compostela, mas ainda passaria por alguns desafios até concluir minha peregrinação em duas rodas até a catedral construída em homenagem ao apóstolo Tiago Maior, na Espanha. Subidas íngremes, trechos com muitas pedras soltas, muito vento contra, ansiedade e cansaço haviam ficado para trás no trecho entre Saint Jean Pied Port, no sul da França, e Logrono, capital da província de La Rioja. De Belorado, minha ideia era fazer um trajeto curto até a grande Burgos – cerca de 50 quilômetros – que havia programado justamente para poder chegar cedo, me hospedar e conhecer a catedral em estilo gótico francês que teve a construção iniciada em 1221, além de um museu que conta a história da evolução humana. Mas não foi bem assim que aconteceu.


Em estilo gótico francês, a Catedral de Burgos. Sua construção teve início em 1221 e, infelizmente, não pude conhecer seu interior
O dia amanheceu bastante frio e chuviscando. A roupa que havia deixado no varal estava molhada. Precisei me proteger e garantir a impermeabilidade da minha bagagem. Entre Tosantos e Vilambistia a chuva começou a apertar e, poucos quilômetros depois, em Espinosa Del Camino, tive que ampliar a proteção, vestindo o poncho. A precipitação foi aumentando conforme era maior também a inclinação para acessar Villafranca Montes de Oca. Após o pequeno povoado se atravessa uma região de montanha e floresta composta principalmente por árvores caducifólias, que haviam perdido suas folhas entre Outono e Inverno.


Mais subida, mas pedras e uma cruz de madeira. Depois desse trecho, em Atapuerca, já se avista a grande Burgos

Frio, molhado e escorregadio. Devagar e sempre morro acima, mas sem reclamar da condição climática. Era preciso agradecer a oportunidade de estar ali. A cada metro em direção a parte mais alta da montanha, mais gelado ficava. Havia muitos peregrinos nesse trecho, grupos que acabavam se encontrando em um local famoso na etapa, o “Oásis do Caminho”. No meio da sombria e gélida floresta, que serviria perfeitamente para filmes de suspense ou terror, um pequeno comércio atende os passantes com frutas, biscoitos, bolos, chocolate e café quente. Não há preço por nada, cabendo à pessoa doar um valor seguindo seu coração. A simpática anfitriã espanhola me serviu um café e pareceu feliz em receber mais um bicigrino do “rrrio de rranero”.

Frio e falta de hospedagem
Nesse momento parou de chover. O trecho entre o “Oásis” e San Juan de Ortega é morro abaixo, com a sensação térmica perto de zero grau atravessando o corpo e marcando a alma. Nas localidades seguintes, Agés e Atapuerca, o sol abriu. Os declives e planícies logo foram substituídas por mais um ponto com muitas pedras, até onde existe uma grande cruz de madeira. Desse local já se avista Burgos. “Agora é só descer”. O horário estava bom, como previsto. O que não previa, mas imaginava que aconteceria em algum momento da viagem, é não conseguir hospedagem na famosa cidade. Albergues municipais e privados lotados e hotéis na região central com preços fora de cogitação para um peregrino que recebe em Real e estava gastando em Euro… Fiquei cerca de duas horas rodando em busca de um lugar que me permitisse ficar um tempo maior em Burgos, mas precisei deixar para trás, pelo menos naquele momento, a vontade de visitar o interior da Catedral de Virgem Maria e o museu da evolução humana… Seguir em frente, essa é a vida. Fui até Tardajos, onde consegui local para dormir, totalizando 72 quilômetros e 843 metros de altimetria acumulada.

O castelo medieval e o canal
Dormi no La Casa de Beli, bom ambiente, camas e restaurante em anexo. O dia amanheceu com um céu azul lindo, gelado. Em Rabé de las Calzadas, o som de canto gregoriano me atraiu para a capela da Virgem do Monastério. Em uma das pedras no entorno da arqueada porta, a mensagem “amor e paz primeiro”. Fui muito bem recebido por uma senhora, que carimbou minha credencial e me presenteou com uma medalhinha da Virgem.
Na estradinha de terra batida que peguei a seguir, uma plaquinha indicava o próximo desafio: “Você está entrando na meseta”. Trata-se da meseta central espanhola, cerca de 200 quilômetros de grandes planícies que favorecem no quesito altimetria, mas se tornam um grande exercício psicológico. Tudo “igual”, repetitivo e quente.
Antes de entrar de vez nessa etapa se passa por Hontanas e Castrojeriz. O último é famoso pelas ruínas de um castelo medieval, localizado no topo de uma montanha e consequentemente visto a boa distância. Para acessa-lo, é preciso sair um pouco do Caminho de Santiago. Por isso, dificilmente é visitado por quem não ficará hospedado nessa localidade. Na saída de Castrojeriz, a última grande subida antes dos duros campos da meseta. Para acessar e topo de morro, 12% de inclinação. Do outro lado, o desnível é ainda maior, 17%, felizmente morro abaixo.
Poucos quilômetros depois, destaque para a beleza e calmaria do Canal de Castilla, obra do século XI que abastece uma enorme árida região. O trecho ao lado do Caminho de Santiago termina em Frómista, onde pernoitei. Até ali, desde Tarjados, foram 57 quilômetros e 601 metros de altimetria acumulada.

A meseta central
Em Frómista fiz amizade com mais um compatriota, o paulista Kate Tai. “Vai Corinthians”, gritou o rapaz com traços orientais ao avistar a bandeira brasileira na minha bagagem na saída do Canal. Sem combinar, terminaríamos no mesmo albergue, o Estrella del Camino. Tivemos longa conversa sobre os motivos de estar ali, contando detalhes da nossa trajetória de vida mesmo sem ter nenhuma intimidade. Mais uma magia do Caminho. A localidade seguinte é Carrion de Los Condes. De Frómista até lá, o caminho segue bem ao lado da rodovia e há dezenas de totens com a concha de vieira. Mais um dia azul e bastante gelado, Primavera ainda com fortes traços de Inverno.
Como citei acima, a meseta central é um verdadeiro exercício para a mente. Em um dos trechos há uma reta de 17 quilômetros! Dezessete, com o cenário praticamente idêntico, geralmente embaixo de um sol forte. Essa parte do Caminho de Santiago é tão desgastante mentalmente que muitos que estão a pé ou alugam uma bicicleta ou simplesmente pulam essa etapa, seguindo de trem de Palência até León.


O famoso "el Oasis del Camino", ponto de apoio aos peregrinos e bicigrinos no meio da gélida floresta de Vilafranca
Mesmo em duas rodas, é preciso trabalhar bem o psicológico. Só para se ter uma ideia das condições do terreno, por um longo trajeto se avista na direita o Parque Nacional Picos de Europa, que está a quase 300 quilômetros dali… E a cena se repete por horas. No lado oposto, apenas um pequeno caminho em terra batida, ao lado da estrada asfaltada, e centenas de árvores, estas plantadas em meados dos anos 2000 com o objetivo de garantir sombra para os peregrinos.

O meio do caminho
Aproximadamente 60 quilômetros depois de Frómista, cheguei a Sahagun. O pequeno povoado é conhecido por ser considerado o meio geográfico do Caminho Francês, havendo indicações históricas sobre esse marco e a entrega, aos interessados, de uma “meia compostela”, documento similar ao certificado obtido no final da peregrinação. Também é necessário apresentar a credencial com os carimbos que comprovam a saída desde Saint Jean.


Entre Agés e Atapuerca, mais um cenário espetacular. Impossível não parar para registrar um local como esse
Na entrada desse povoado, mais um encontro no mínimo curioso. Entre os brasileiros estava Riva Bomquipani de Freitas, moradora de Nova Friburgo. Além residir em cidade vizinha a minha, é mãe de um conhecido, Leonardo, quem tive contato por vários anos em trabalhos realizados no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Ela até se assustou quando, no “meio do nada”, ou no meio do Caminho, no caso, estava alguém que conhecia seu filho.
Conversamos um pouco sobre a coincidência, as dificuldades até ali e o que ainda teríamos pela frente. Fiz um lanche em Sahagun e segui em frente. Teria ainda mais 60 quilômetros, muitas longas retas, muito calor e cansaço psicológico da etapa. O sol forte também foi desgastante e contribuiu para que eu errasse uma entrada e caísse na carreteira, proibida para ciclistas. Pouco tempo depois descobri isso, sendo orientado e guiado por policiais da província de Castilla & León até encontrar um acesso à rota jacobéia. Não fosse bicigrino, seria multado em nada menos que 250 Euros.
Cheguei a León no finalzinho da tarde e, devido à experiência em Burgos e por saber que seria uma longa etapa, havia deixado o albergue reservado. Foi a única vez que fiz isso. Reencontrei o Kate, que havia pulado a meseta por logística de tempo, e o amigo André, o ciclista que havia “desaparecido” entre Estella e Logrono. Agora nossos ritmos estavam parecidos e acabamos pedalando juntos por mais dois dias.
Na próxima semana abro meu diário para contar como foi viver o trecho entre León, Astorga e Ponferrada, passando pela emocionante Cruz de Ferro. O projeto “Teresópolis no Caminho de Santiago de Compostela” teve o apoio da Trilhas & Rumos, Cycle São Cristóvão, Loja Top Spin, Corpo & Ação, jornal O Diário de Teresópolis e Diário TV.

 

Muita chuva e frio no acesso a montanha depois de Vilafranca Montes de Oca. Mesmo assim,  é preciso agradecer por estar ali

 

 

 

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Edição 26/04/2024
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